sábado, 18 de abril de 2020

"Freud" na Netflix (Spoiler)

Tem sido comum utilizarem o nome de figuras históricas em séries como uma forma de atrair o público. No entanto, quando deixam claro que é só para isso que aquele nome está lá, no título, não há grandes repercussões a respeito, até porque a arte pode usufruir da sua liberdade poética para criar. Este, é claro, não foi o caso da série Freud. 
O próprio roteirista, Marvin Kren, informou que a série traria muito da personalidade de Freud¹, que se ateriam a fatos históricos para transformá-lo em alguém que se envolve na investigação de crimes e etc. Deixando, assim, muitos leigos, psicanalistas, psicólogos e estudantes da área intrigados para algo que, no fim das contas, trouxe muito desgosto para quem assistiu e conhece a história real do pai da psicanálise. Para quem é psicanalista, a série foi um desgosto muito grande, bem como o modo que se referiram ao pai da psicanálise e aos seus conceitos. 
Para contextualizar, ressalta-se que esta série se passa em 1886, em Viena e retrata o jovem e desacreditado Freud e mais alguns outros personagens, como uma família de origem húngara, que inclusive tem um cachorro que se chama Sándor (que espero que não seja uma referência a Sándor Ferenczi), algumas vítimas de crimes horrendos, policiais, médicos e a família imperial.
Quem é da área até conseguiu perceber algumas sutilezas na série - como o uso do divã em alguns momentos -, da mesma forma que a cena em que Freud mata o pai e tem relação sexual com a mãe não soa tão estranha, pois percebe-se que é uma referência ao Complexo de Édipo. Para o público leigo, no entanto, a coisa fica meio esquisita.
Além disso, logo no primeiro episódio, temos um Freud charlatão, que pede para a empregada fingir-se de hipnotizada. Isso faz surgir, no imaginário popular, ideias errôneas e infundadas sobre a hipnose e a própria psicanálise. Freud não precisava, nem queria, pedir para alguém fingir-se de hipnotizado, até porque teve muitas demonstrações de histéricas sob hipnose em Paris. Ele, apesar de reconhecer as limitações e de não ser um exímio hipnotizador, sabia que aquilo funcionava de alguma maneira. Foi desacreditado pelos médicos não por ser um mentiroso, mas por seus métodos não se encaixarem nos preceitos da ciência da época.
Outro ponto a ser esclarecido é o fato de mostrarem um jovem médico viciado em cocaína e que, inclusive, bebe, enfia no nariz e etc, várias quantidades do entorpecente. Sem contar o fato de que aquilo na vida real o mataria, é importante comentar que na época os efeitos da cocaína estavam sendo descobertos. Freud usava e prescrevia, descobriu benefícios e com o tempo percebeu também os efeitos colaterais, o que o levou a interromper o uso. Na série, no entanto, aquilo está lá, mas parece que não serve a nenhum propósito além de comprometer a imagem do pai da psicanálise, já que o significado da droga hoje é bem diferente daquele tempo. 
Percebe-se, ainda, que no decorrer dos episódios os conceitos psicanalíticos foram jogados no público, sem qualquer explicação, fazendo da série um todo sem pé nem cabeça e até mesmo cansativa. Como exemplo disso temos a questão da paciente Fleur Salomé que acabou deixando algumas pessoas intrigadas se a moça afinal era histérica ou médium, assim como o diagnóstico de dissociação ficou muito mal encaixado, já que a jovem não só via coisas ou parecia criar em si dois personagens diferentes, ela também previa o futuro e falava com pessoas que realmente morreram, o que fazia tudo extrapolar de um caso de dissociação para uma questão mediúnica ou premonitória.
Além de Fleur Salomé nunca ter existido, Freud também não se envolveu com pacientes e recomendava a seus discípulos que não o fizessem. Ele também não tinha posses, então precisava se estabelecer para casar-se com Martha, por quem era muito apaixonado e dividia suas angústias e impressões acerca de pacientes. Eles realmente se casam na vida real e, inclusive, moram no local construído após o incêndio de um teatro, como é mostrado na série.
Martha tem um papel fundamental na vida de Freud, assim como suas pacientes histéricas o tiveram. Histéricas de verdade, com crises de paralisia ou cegueira, como aquela que aparece no hospital da série e os médicos mandam embora por estar fingindo.
A série esquece - ou esconde - a principal constatação freudiana de que não é porque uma doença tem origem na psique que ela deve ser deixada de lado ou considerada como insignificante. Aquelas mulheres(e homens!!) sofriam de verdade por questões inconscientes e suas vidas eram extremamente comprometidas a partir daí. Era preciso que alguém fizesse algo por essas pessoas.
Por fim, pondera-se que a psicanálise já recebe muitas críticas por não de assentar nos preceitos da ciência moderna - fala-se ate que a psicanálise seria uma ciência pós moderna - e produções como esta comprometem ainda mais a visão de pacientes e leigos sobre o tratamento psicanalítico. 
Por isso, é importante manter sempre a criticidade e beber em fontes confiáveis. Nem tudo que está no computador, no celular, no tablet e etc é real. Existem biografias muito boas sobre o pai da Psicanálise, leiam, informem-se².

¹ Link de acesso para a reportagem: 

² Biografias indicadas: 
Freud: uma vida para nosso tempo (Peter Gay)
Vida e obra de Sigmund Freud (Ernest Jones)
Sigmund Freud na Sua Época e Em Nosso Tempo (Elisabeth Roudinesco)

terça-feira, 7 de abril de 2020

É possível ter uma doença no corpo com causa psicológica?

Temos o costume de pensar que se estamos com determinado sintoma ele, com certeza, terá uma lesão orgânica que o justifique. Porém, para a nossa surpresa, às vezes vamos ao médico com toda uma sintomatologia e ele nos diz: "É só psicológico!". Nesse momento não sabemos se ficamos aliviados ou mais preocupados ainda porque continuamos com os sintomas e sofremos com eles, mas pelo menos não estamos fisicamente doentes.
O que também é muito comum é passarmos por determinada situação geradora de desequilíbrio emocional e algum tempo depois apresentarmos alguma doença. Vamos ao médico e ele também nos diz: "É psicológico!". E nós vamos embora sem saber muito bem o que fazer com isso, fisicamente doentes e com alguns remédios para comprar.
Aqui temos a diferença entre somatização (1º caso) e doença psicossomática (2º caso). Na primeira situação a pessoa tem sintomas físicos, porém não há exame que os comprovem; e na segunda, a pessoa tem sintomas físicos atestados por exames, porém estes foram ocasionados por algum evento que incitou forte emoção no paciente. O fato é que ambos os casos denotam a relação estreita entre corpo e mente e a necessidade de se dar atenção aos aspectos psicológicos nas doenças.
Há uma frase famosa em termos de estudos sobre Psicossomática, na qual Perestrelho(1964 apud MELLO FILHO et al., 2010)afirma que não se deve dizer que existem doenças psicossomáticas, mas sim que todas as doenças são psicossomáticas. E, se avaliarmos bem, mesmo que não haja uma causa psicológica para a origem de uma doença física, esta terá repercussões psicológicas. Por exemplo: alguém que tem câncer pode apresentar várias reações emocionais ao diagnóstico e poderá, até mesmo, desenvolver transtornos psicológicos à partir da descoberta. E não só o câncer, mas também as alergias, gastrites, insônias, gripes, diarreias e etc.
E, para finalizar, vale ressaltar que não é porque você tem ou conhece alguém que tenha uma “doença psicológica” que o tratamento pode ser dispensado. Aquilo que é psicológico pode ter efeitos muito sérios no que é físico. Existem doenças psicossomáticas que podem levar o indivíduo a morte e, por isso, a pessoa precisa de acompanhamento. E não só de um médico, mas também de um psicólogo. Da mesma forma acontece com as somatizações: como dito anteriormente, temos a infeliz ideia de considerar que apenas aquilo que pode ser visto ou localizado no corpo merece atenção e não é bem assim. Nossa mente tem tanto efeito sobre o corpo quando o contrário e por isso não se pode negligenciar tais casos. Corpo, mente e social interagem-se constantemente. Lembre-se disso.


Referência:

MELLO FILHO, Julio de. Psicossomática Hoje, 2ª ed, Artmed, 2010.

domingo, 5 de abril de 2020

COVID-19 e Saúde Mental

De dentro de nossas casas olhamos pelas janelas e vemos belos dias: ensolarados, gostosos e... tranquilos? Sim, tranquilos. Por um instante percebemos que, por incrível que pareça, a vida segue e o mundo continua girando. Realizamos, ainda, que somos finitos, passageiros, substituíveis e que as coisas existem com ou sem a gente.
Ouvimos poucos carros e não encontramos quase ninguém na rua; poucas risadas, nenhum contato físico e olhares de soslaio. As lojas estão fechadas, mas os hospitais estão cheios; não podemos trabalhar, mas também não estamos de férias.
Perdemos o controle: ele escapou de nossas mãos como sabão no banho. Tudo é incerto, tememos o futuro e as paredes de nossas casas nos sufocam. Não achamos o que fazer: limpamos os cômodos, arrumamos os armários, comemos e damos comida para nossos animais ou filhos, vemos filmes e séries e lemos livros e assistimos TV e inventamos receitas e jogamos o tempo fora olhando as redes sociais e... nada. É difícil preencher o dia.
E mais! É difícil estarmos isolados com nós mesmos. Não nos conhecemos e nem ousamos. Tentamos parecer bem e focados para não precisamos enfrentar nossos monstros internos e nos responsabilizarmos por eles.
Também, de qualquer forma, COVID-19 nos acompanha desde o momento em que acordamos até a hora que dormimos. O vírus ditará as próximas regras e nós teremos de aceitá-las, gostando ou não, perdendo dinheiro ou não, deixando empregos ou não e, é claro, enlutados pelas pessoas que amamos ou não.


São tempos horríveis, tenebrosos, não há como fingir que não são. A ansiedade nos toma por completo e nós sofremos com as infinitas possibilidades que o destino nos reserva a partir de agora. Temos medo, temos crises, temos surtos... às vezes nos sentimos bem e outras nos vemos por um fio.
Não tenha vergonha de pedir ajuda, aliás, tenha coragem. Coragem para lidar com você mesmo.