Tem sido comum utilizarem o nome de figuras históricas em séries como uma forma de atrair o público. No entanto, quando deixam claro que é só para isso que aquele nome está lá, no título, não há grandes repercussões a respeito, até porque a arte pode usufruir da sua liberdade poética para criar. Este, é claro, não foi o caso da série Freud.
O próprio roteirista, Marvin Kren, informou que a série traria muito da personalidade de Freud¹, que se ateriam a fatos históricos para transformá-lo em alguém que se envolve na investigação de crimes e etc. Deixando, assim, muitos leigos, psicanalistas, psicólogos e estudantes da área intrigados para algo que, no fim das contas, trouxe muito desgosto para quem assistiu e conhece a história real do pai da psicanálise. Para quem é psicanalista, a série foi um desgosto muito grande, bem como o modo que se referiram ao pai da psicanálise e aos seus conceitos.
Para contextualizar, ressalta-se que esta série se passa em 1886, em
Viena e retrata o jovem e desacreditado Freud e mais alguns outros personagens, como uma família de origem húngara, que inclusive tem um cachorro que se chama
Sándor (que espero que não seja uma referência a Sándor Ferenczi), algumas
vítimas de crimes horrendos, policiais, médicos e a família imperial.
Quem é da área até conseguiu perceber
algumas sutilezas na série - como o uso do divã em alguns momentos -, da mesma forma que a cena em que Freud mata o pai e tem
relação sexual com a mãe não soa tão estranha, pois percebe-se que é uma referência ao Complexo de Édipo. Para o público leigo, no entanto, a coisa fica meio
esquisita.
Além disso, logo no primeiro episódio, temos um Freud charlatão, que pede para a empregada fingir-se de hipnotizada. Isso faz surgir, no imaginário popular, ideias errôneas e infundadas sobre a hipnose e a própria psicanálise. Freud não precisava, nem queria, pedir para alguém fingir-se de hipnotizado, até porque teve muitas demonstrações de histéricas sob hipnose em Paris. Ele, apesar de reconhecer as limitações e de não ser um exímio hipnotizador, sabia que aquilo funcionava de alguma maneira. Foi desacreditado pelos médicos não por ser um mentiroso, mas por seus métodos não se encaixarem nos preceitos da ciência da época.
Outro ponto a ser esclarecido é o fato de mostrarem um jovem médico viciado em cocaína e que, inclusive, bebe, enfia no nariz e etc, várias quantidades do entorpecente. Sem contar o fato de que aquilo na vida real o mataria, é importante comentar que na época os efeitos da cocaína estavam sendo descobertos. Freud usava e prescrevia, descobriu benefícios e com o tempo percebeu também os efeitos colaterais, o que o levou a interromper o uso. Na série, no entanto, aquilo está lá, mas parece que não serve a nenhum propósito além de comprometer a imagem do pai da psicanálise, já que o significado da droga hoje é bem diferente daquele tempo.
Percebe-se, ainda, que no decorrer dos episódios os conceitos psicanalíticos foram jogados no público, sem qualquer explicação, fazendo da série um todo sem pé nem cabeça e até mesmo cansativa. Como exemplo disso temos a questão
da paciente Fleur Salomé que acabou deixando algumas pessoas intrigadas se a moça afinal
era histérica ou médium, assim como o diagnóstico de dissociação ficou muito mal
encaixado, já que a jovem não só via coisas ou parecia criar em si dois
personagens diferentes, ela também previa o futuro e falava com pessoas que
realmente morreram, o que fazia tudo extrapolar de um caso de dissociação para
uma questão mediúnica ou premonitória.
Além de Fleur Salomé nunca ter existido, Freud também não se envolveu com
pacientes e recomendava a seus discípulos que não o fizessem. Ele também não tinha posses, então precisava se estabelecer para casar-se com Martha, por
quem era muito apaixonado e dividia suas angústias e impressões acerca de pacientes. Eles realmente se casam na vida real e, inclusive, moram no local construído após o incêndio de um teatro, como é mostrado na série.
Martha tem um papel fundamental na vida de Freud, assim como suas pacientes histéricas o tiveram. Histéricas de verdade, com crises de paralisia ou cegueira, como aquela que aparece no hospital da série e os médicos mandam embora por estar fingindo.
A série esquece - ou esconde - a principal constatação freudiana de que não é porque uma doença tem origem na psique que ela deve ser deixada de lado ou considerada como insignificante. Aquelas mulheres(e homens!!) sofriam de verdade por questões inconscientes e suas vidas eram extremamente comprometidas a partir daí. Era preciso que alguém fizesse algo por essas pessoas.
Por fim, pondera-se que a psicanálise já recebe muitas críticas por não de assentar nos preceitos da ciência moderna - fala-se ate que a psicanálise seria uma ciência pós moderna - e produções como esta comprometem ainda mais a visão de pacientes e leigos sobre o tratamento psicanalítico.
Por isso, é importante manter sempre a criticidade e beber em fontes confiáveis. Nem tudo que está no computador, no celular, no tablet e etc é real. Existem biografias muito boas sobre o pai da Psicanálise, leiam, informem-se².
¹ Link de acesso para a reportagem:
² Biografias indicadas:
Freud: uma vida para nosso tempo (Peter Gay)
Vida e obra de Sigmund Freud (Ernest Jones)
Sigmund Freud na Sua Época e Em Nosso Tempo (Elisabeth Roudinesco)